... aos possuidores de défice de caracter
Estas minhas crónicas, serão sempre escritas na primeira pessoa. Assim o entendo, porque, enquanto individuo que também é jornalista, considero indissociável a minha condição de cidadão da de jornalista.
E a Opinião é um direito de ambos. O cidadão e o jornalista. E estes textos apenas reflectem o meu pensamento.
Esta é a estreia de a “Carta Fechads” da Empreendedores. Serão textos, sem periodicidade definida e, muito menos, sem presunções.
Apenas pretendo que nos ajudem a reflectir, algo tão parco nos dias deste século XXI, que já leva 21 anos. É este pelo menos o objectivo. Alcançá-lo, ou não, será determinado pela conclusão de cada leitor.
Tenho 57 anos, 34 de jornalismo, 25 deles, em simultâneo, ligados à edição de livros, uma paixão que me acompanha desde muito cedo. Ainda me recordo do meu nº de cartão de leitor da Biblioteca pública da cidade onde cresci, no meu amado Alentejo. O nº 21 consumia avidamente livros ao ponto de a própria Mãe, imbuída da sincera aspiração pela sã convivência do seu rebento, na altura com 10 anos, o impelia a ir sair e brincar com os amigos. Mas ele, eu, tinha já muito “amigos”: os personagens dos meus livros. É dessa idade a leitura de uma comovente história que me arrepiou e com a qual devo ter vertido algumas lágrimas (às escondidas, porque homem não chora, era o que diziam) de um jovem “Sem Família”. Era este o título. Lembro-me da sua imensa alegria quando alguém lhe deu umas botas cardadas.
Não sei se foi desde aí, ou se o livro em questão apenas influenciou o momento vivido durante a leitura, que fazer o “Bem” passou a fazer parte da minha forma de ser. Afinal a personalidade de cada um de nós, leva a anos a formar-se.
Talvez não o tenha sempre praticado, pelas mais diversas razões que provavelmente dariam mais 85 textos. Mas a linha do tempo não perdoa. E quando temos 20 ou menos anos de idade, o mundo é todo nosso. Somos invencíveis, imortais, até. Mais tarde compreendemos o Planeta tal qual ele é. Uns mais que outros!
Mas não podemos retirar aos mais novos essa espécie de utopia. Sem ela, não viverão verdadeiramente a sua adolescência e juventude. Tal como a andorinha que deixa um dia voar os seus filhotes, a Mãe-Natureza encarrega-se do que falta! E a Mãe-Natureza é tão incompreendida.
Mas voltemos à amizade. Aquela que nos une a pessoas reais. O leitor tem muitos amigos? A sério? 100? Mas está a pensar na vida real?
Pois é … questionar alguém que afirma peremptoriamente que tem este, ou um número de amigos superior na sua vida, só nos leva a dois pensamentos: ou ele não sabe o que é a amizade ou então é alguém cheio de muita sorte!
Sim, caro leitor, a amizade não se decide. Constrói-se. E leva anos tal qual a reputação de algo ou de alguém. Sei que esta afirmação não passa de um cliché. A verdade é que a vida está cheia de clichés que deveriam ser absorvidos por muito boa gente, dado que também os clichés da vida, nos podem ajudar a ter maior clarividência e até a sermos melhores pessoas.
E o que é isto de sermos melhores pessoas? Darmos esmola, sem olharmos na cara o pobre que sentado no passeio estende a mão? Nada disso. Esqueçam as esmolas. Para mais, hoje são mais as redes criminosas que exploram pessoas no limbo da vida do que verdadeiramente o pobre que pede uma moeda. Eu não dou esmolas. Excepção feita quando vejo alguém, uma senhora de idade, por exemplo, em que a minha intuição me diz que, genuinamente, é uma pessoa necessitada. Importante também, darmos pistas, porque muitas vezes as ajudas existem e seja por vergonha ou por ignorância, não as procuram.
Mas então, perguntará, como fazer o bem? Como ajudar? Há tantas e tantas formas de o fazer. E pode estar perto de si a pessoa que precisa de ajuda. E a ajuda nem sempre tem que ser, necessariamente, material. Além de espiritual, há também situações mais prosaicas que exigem a nossa atenção e a nossa dádiva sem nada esperar em troca.
Um dia, alguém bastante info-excluído, pediu-me ajuda para resolver uma questão informática. Eu, que até sabia resolver a situação em causa, imediatamente me disponibilizei para ajudar, afirmando que não valia a pena pagar a nenhum técnico.
Nunca, em tempo algum, me passou pela cabeça receber o que quer que fosse. Afinal, sou jornalista e editor de livros. Informática, só mesmo na óptica do utilizador. E tratava-se, pensava eu, de uma amiga!
Combinou-se dia e hora. Resolvi a questão. Demorou, talvez duas ou três horas. Foi numa tarde até chuvosa, creio, apesar dos anos já passados.
Eis o meu espanto quando a pessoa em causa, proprietária de um estabelecimento de restauração, onde nos encontrávamos a tratar daquele tema digital, me vem servir à mesa onde eu trabalhava, uma chávena de chocolate quente e um croissant, ou algo semelhante, confesso que não recordo com exactidão.
Não estava à espera, e até nem me apetecia muito. Quando estou concentrado numa tarefa tenho dificuldade em lembrar-me de comida.
Mas a pessoa insistiu. E eu anuí, ao mesmo tempo que explicava que não havia necessidade e eu até nem estava com fome. Tínhamos sobeja confiança mútua. Mas a insistência foi tanta que considerei que a pessoa se poderia sentir ofendida perante a minha recusa. Num primeiro momento, considerei o gesto simpático.
Eis então o “murro no estômago”: “Oh Paulo, mas você tem estado aqui a trabalhar e tenho que lhe pagar. Não vai estar aqui a gastar o seu tempo de borla.” Citei de cor, mas se adulterei algo, o sentido não o foi. Fiquei estarrecido, confesso. Eu, que com a maior das satisfações acorri a alguém que tinha uma necessidade que eu podia suprir, esse alguém queria pagar-me! Ela, é uma senhora, não entendeu que o “Bem” não precisa de pagamento. Quem o faz sabe do que falo, quando afirmo que a satisfação interior e a alegria de contribuirmos para o bem-estar do próximo, é pagamento mais do que suficiente. Se é que pagamento lhe devemos chamar! Só pessoas com défice de caracter ou de amor próprio, podem considerar o contrário.
Ah, e o chocolate, por acaso, era intragável.