Desde que me lembro durante a minha infância e adolescência em Elvas, um dos meus sonhos era conhecer a Amazónia, mas nunca sonhei viver na Amazónia. Depois de terminar o curso em Portugal, na Universidade do Algarve, passei uns anos em Inglaterra onde fiz o doutoramento e iniciei a minha carreira.
Quando voltei para Portugal trabalhei na empresa Hovione, e ao fim de 5 anos, por motivos pessoais, mudei-me com 2 filhos e 7 malas para Manaus, capital do estado do Amazonas.
Aqui moro e trabalho há 7 anos, aqui descobri o poder da Natureza e a magia da Floresta.
A adaptação não foi muito fácil, pois apesar de já ter morado em outro país estrangeiro, Manaus não se parecia nada com os lugares onde eu já tinha estado.
Pela sua localização geográfica, a cidade pode ser considerada uma ilha, por onde só se entra e sai de barco ou avião. Quando olhamos o mapa, a cidade é apenas um pontinho no meio de uma imensidão de floresta e rios.
Por estas características, a vida aqui também é diferente, a cultura é Brasileira, mas tem muita influência da cultura indígena.
Na Amazónia vivem cerca de 180 povos indígenas, aproximadamente 200 mil pessoas. São 86 línguas e 650 dialetos. Os nomes portugueses misturam-se com a linguagem dos povos nativos.
Hoje em dia, nomes como tambaqui, pirarucu, tucumã, tacacá, tucupi, já fazem parte da minha rotina, são nomes de peixes, frutos e pratos da culinária Amazonense. Outra característica interessante é a elevada densidade populacional de Manaus. Aqui vivem mais de 2 milhões de pessoas.
O principal motivo da elevada densidade populacional é o Polo Industrial de Manaus, planeado para abrigar as empresas que aqui se instalaram devido aos incentivos fiscais da Zona Franca, criada em 1967.
Hoje em dia, o Pólo é um parque industrial com aproximadamente 440 empresas, que geram cerca de 90.000 empregos. São grandes fábricas como a Honda, Yamaha e a Samsung, que emprega 5 mil pessoas. Este pólo industrial, gerador de empregos, é um dos principais fatores pelos quais o estado do Amazonas é o que sofre menos desmatamento florestal.
O Amazonas é o maior estado em área territorial do Brasil, com 1.559.161 Km2, mais de 16 vezes a área de Portugal continental, sendo que 98% deste território é área de floresta.
Estas dimensões aliadas às dificuldades logísticas, fazem com que o modo de viver seja também muito diferente, no meio da floresta e dos rios, onde habitam os povos desse meio. Além dos povos indígenas, outras comunidades tradicionais vivem nesta região. Uma verdadeira miscigenação, mistura de etnias, religiões e culturas. Descendentes de quem veio de outras regiões do Brasil, como os Nordestinos durante o ciclo da borracha (seringueiros), e até mesmo de outros países como Portugal e o Japão. Esta riqueza cultural faz com que estas populações tradicionais sejam detentoras de conhecimentos que precisam ser reconhecidos.
O conceito de florestania, nasceu do movimento liderado por Chico Mendes, que une a proteção da floresta com os direitos dos cidadãos que habitam esta região. E por direitos, entenda-se o direito a uma atividade económica, o acesso à educação, saúde, energia, comunicação, direitos estes que nos dias de hoje ainda são uma carência no interior da Amazónia.
As principais atividades de quem vive no interior, longe das cidades, são a caça, pesca e o extrativismo. É a partir destas atividades que as famílias conseguem os seus alimentos diários. Mas só isto não chega. Os jovens procuram algo mais e muitos deles deixam as suas comunidades e vão viver para a cidade, um êxodo rural que faz com que aproximadamente 70% da população do estado do Amazonas viva em Manaus.
Tentei descrever esta realidade porque muitos dos que nunca vieram à Amazónia acreditam que aqui é só floresta e índios. Este preconceito faz com que muitas das políticas públicas de investimento na região sejam de apoio a atividades protecionistas de conservação. É necessário valorizar as comunidades ribeirinhas que aqui vivem, são elas quem realmente cuida e protege a floresta. A grande maioria não quer derrubar árvores, não quer ir para o garimpo ilegal.
É aqui que a minha atividade profissional atua, é nesta interface entre o conhecimento das comunidades tradicionais sobre o uso dos produtos florestais e a procura dos consumidores por produtos com ingredientes naturais. Como se transforma uma semente proveniente da atividade extrativista no meio da mata, num ingrediente qualificado que possa fazer parte de um produto cosmético ou alimentar?
Se conseguirmos dar mais qualidade e visibilidade a estes ingredientes com propriedades únicas, podemos alavancar a bioeconomia da região, valorizando cada vez mais a floresta em pé e aumentando o rendimento per capitada população do meio rural. Se conseguirmos provar que os produtos florestais não madeireiros, como óleos, frutos, extratos de plantas, têm um valor comercial muito superior à madeira, não há razões para desmatar ilegalmente, e chegamos a um desenvolvimento económico sustentável. Estamos a falar de ingredientes com elevado valor comercial, como óleos essenciais, frutos com atividade antioxidante e de grande valor nutricional, e plantas com propriedades fitoterapêuticas.
Esta deveria ser uma das principais vocações comerciais da região, mas faltam empresas, faltam fábricas, laboratórios, apoios de capacitação técnica para as comunidades. Falta a estruturação das cadeias produtivas.
Eu comecei a trabalhar com ingredientes naturais quando trabalhava na empresa Natura, de cosméticos e perfumaria. Fui responsável por um projeto de bioprospecção de ingredientes para perfumaria. Aqui aprendi como qualificar um ingrediente natural e a importância de todo o ecossistema nas propriedades desse ingrediente.
Quando pensamos em óleos essenciais, pensamos no óleo extraído das plantas dos campos de lavanda em França, áreas a perder de vista de flores lilases. A minha experiência foi muito diferente, procurar um óleo essencial novo na floresta não foi assim tão fácil. Um estudo recente revela que a diversidade de plantas na Amazónia compreende mais de 14.000 espécies!
A minha área de prospecção era reduzida, mesmo assim o número de plantas diferentes por metro quadrado é bastante significativo. As plantas eram levadas para um laboratório improvisado onde eram preparadas e onde se fazia a extração dos óleos essenciais.
Esses óleos eram depois avaliados por uma perfumista, que determina o seu potencial inovador e criativo dentro de uma composição que se transforma num perfume. Citando um ex colega meu, os óleos essenciais são o coração das plantas e a alma dos perfumes. Ainda assim, esta é a parte mais fácil de produzir um novo ingrediente natural.
Após a seleção, vem a parte de cultivar essa mesma espécie, esperar que ela cresça num relativo curto espaço de tempo, com elevado rendimento de óleo e que as propriedades aromáticas/olfativas se mantenham.
O exemplo dos óleos essenciais é o tipo de ingrediente que necessita de um grande número de matéria vegetal, devido ao baixo rendimento de extração. A vantagem é que este é um produto de elevado valor acrescentado.
Temos o exemplo do óleo essencial de pau-rosa (Aniba rosaeodora), um dos óleos que faz parte da composição do perfume Chanel Nº 5. Este óleo é extraído de uma árvore da região amazónica, a árvore de pau-rosa (rosewood, em inglês). Quando o perfume lançado pela Chanel começou a fazer sucesso (1940-50), a procura pelo óleo essencial disparou e quase levou a espécie à extinção.
O valor comercial do óleo está hoje em redor dos US$1.000,00 / L, sendo a extração atualmente feita com um plano de manuseamento em vez do abate da árvore (que se encontra na lista de espécies ameaçadas de extinção). O óleo é extraído da poda das folhas e galhos.
Este é um exemplo do tipo de ingredientes que pode ajudar na bioeconomia da região, com um alto valor acrescentado, num processo produtivo com baixo índice tecnológico e de forma sustentável sem necessidade de cortar árvores.
Atualmente o meu trabalho é focado na qualificação de ingredientes naturais provenientes da região amazónica.
Fazemos avaliação em laboratório dos óleos vegetais produzidos pelos pequenos produtores para entender como a qualidade destes produtos se equipara a um produto que possa ser comercializado num mercado nacional e internacional, e tentamos melhorar a sua qualidade. Por exemplo o óleo de buriti, extraído da polpa de um fruto de uma palmeira (Mauritia flexuosa), extremamente rico em beta-caroteno, o percursor da vitamina A, e rico em alfa-tocoferol (vitamina E) é um poderoso antioxidante. Outro óleo com elevadas propriedades é o óleo de copaíba (Copaifera sp.), muito utilizado tradicionalmente como anti-inflamatório e com comprovada atividade biológica através de estudos científicos.
Algumas empresas multinacionais, como a L’Oreal e a L’Occitane, já trabalham com pequenas comunidades e associações produtoras de óleos e manteigas vegetais e incorporam-nos nos seus catálogos. Para que empresas possam comercializar produtos com ingredientes provenientes de biodiversidade brasileira, elas precisam licenciar o acesso ao património genético e ao conhecimento tradicional associado.
Para além de comunicarem ao governo federal que estão utilizando um produto da biodiversidade brasileira, elas também têm que pagar uma parte do lucro da venda deste produto que reverte para a comunidade que detém os conhecimentos tradicionais. Este conhecimento tradicional é como se fosse uma patente que as comunidades tradicionais têm associada ao uso ancestral de um óleo, por exemplo, e as empresas ao “copiarem” este conhecimento têm que pagar “royalties” à comunidade.
Esta regulamentação é lei no Brasil e faz parte de um conjunto de ações determinadas pela Convention on Biological Diversity (CBD), a qual estabeleceu o Protocolo de Nagoya, que se propõe implementar nos vários países signatários, um dos objetivos da CBD, “the fair and equitable sharing of benefits arising out of the utilization of genetic resources” (a repartição justa e equitativa dos benefícios advindos da utilização dos recursos genéticos).
Para quem quer desenvolver produtos com ingredientes naturais provenientes da Amazónia, saiba que não é um processo fácil e rápido, no entanto tem vários benefícios. São produtos de qualidades únicas, podem ser produzidos de forma sustentável e ainda proporcionam vantagens socioambientais, uma vez que promovem um aumento da geração de riqueza nas comunidades e contribuem para a manutenção da floresta em pé.
Os consumidores cada vez dão mais valor a produtos socio e ambientalmente conscientes. Cabe a cada um de nós preocupar-se com a origem dos produtos que consumimos diariamente. No meu trabalho tenho a oportunidade de vivenciar a beleza deste lugar único no nosso Planeta, a imponência da natureza juntamente com a cultura e tradições dos seus povos.
A mensagem que gostaria de deixar é que a Amazónia precisa de ser preservada para o bem da Humanidade. No entanto, os povos que habitam este território também precisam de condições dignas para viver, e são eles que mais podem contribuir para a conservação deste lugar mágico.
Nasci em Elvas, onde morei até aos 18 anos, altura em que entrei na Universidade do Algarve – Faro.
Fiz o curso de Engenharia Biotecnológica, que na época era o primeiro sobre o tema, e no último ano do curso fui fazer o estágio em Inglaterra pelo programa Erasmus na Cranfield University. Já depois de terminar o curso, em 2000, aceitei o convite para fazer o doutoramento em Biotecnologia também em Cranfield, uma universidade só para pós-graduações que fica próximo da cidade de Bedford, na Inglaterra.
Terminei o doutoramento e fui trabalhar para a GSK (Glaxo Smith Kline) como pos-doc scientist no grupo de R&D da Aquafresh. Ao final de 2 anos mudei para a empresa Danisco onde trabalhei como scientist (pesquisadora) na área alimentar de sabores e aromas.
Em 2008 voltei para Portugal para trabalhar na empresa Hovione, em Loures, na área de controle de qualidade de insumos farmacêuticos. Por motivos familiares, em Agosto de 2013 mudei para Manaus, no Brasil.
Na altura os meus filhos ainda eram pequenos, e tivemos uns meses de adaptação. Em 2014 voltei a trabalhar, desta vez para a empresa de cosméticos Natura, como pesquisadora no desenvolvimento de ingredientes naturais da biodiversidade Amazónica.
Foi aí que comecei a fazer trabalhos de campo em áreas mais preservadas de floresta e onde comecei a conheci o modo de vida dos povos nativos e os ribeirinhos.
Devido a mudanças na empresa, em 2016 a Natura fechou o escritório em Manaus e eu comecei a trabalhar no Centro de Biotecnologia da Amazónia (CBA), onde continuo como pesquisadora, coordenadora do laboratório de química dos produtos naturais.