
Um dos trabalhos mais conhecidos de François Marie-Arouet, vulgo Voltaire, é “Cândido ou o Otimismo”. Publicada num século de luzes e de escravidão, esta sátira leva o jovem e ingénuo Cândido a percorrer o globo terrestre e a descobrir como vivem os povos, quais os seus desafios e dificuldades. Em Lisboa, depara-se com o terramoto que abalou os alicerces do pensamento ocidental, e depois de muitas voltas recolhe-se junto da natureza e das pessoas que o acompanharam em parte da sua odisseia, detentor de um conhecimento superior sobre a vida humana: o trabalho enobrece, o ócio depaupera os espíritos.
Posto isto, parece que Portugal fechou o ano de 2020 com uma taxa de desemprego de 6,8%, abaixo das previsões do próprio governo. Gostaria de festejar esse pequeno triunfo entre tanta desolação, mas a verdade é que faço parte desses 6,8%. Desde Maio de 2020, dois meses depois de a pandemia chegar a Portugal, o meu trabalho foi-me arrebatado das mãos, e até agora o governo não me dirigiu nenhuma palavra de consolo. Entendo que estão preocupados com questões mais prementes, e outras tais que se alevantam a cada dia, mas o que está este ócio a fazer por mim e pelos outros desempregados?
Pela primeira vez na vida, tenho tempo para pensar, para aprender macramé, para escrever artigos e para fazer cursos on-line. Pensar não será perigoso? Que diria Voltaire se soubesse que no século XXI uma pessoa que se veja sem trabalho acaba por ter tempo para compreender que o trabalho escraviza e entorpece, em vez de depauperar os espíritos? Imaginei que ficaria deprimida, sem rumo, angustiada com o amanhã: em parte, fiquei. Mas fiquei sobretudo admirada com o mundo de possibilidades que andava a perder. Afinal é possível aprender a coser, fazer macramé, pegar nos pincéis, redecorar a casa com recurso apenas à imaginação, cozinhar receitas novas, fazer bolos e pão. Enfim, viver. Nunca pensei que nas entrelinhas do trabalho estivesse a minha vida e que, apagando-o, poderia descobrir ainda agora, aos 31, aquilo que me dá prazer, aquilo a que gostaria de devotar os meus dias… Quando se trabalha oito horas por dia desde os 21 anos, perdemo-nos desses pensamentos, prosseguimos em modo “sobrevivência”, perdemo-nos de nós próprios. Penso que Voltaire, em 1759, falava para a aristocracia ociosa, que prosperava em cima do trabalho dos desfavorecidos. Mas que diria a estes últimos, que trabalhavam de sol a sol para o bem-estar de meia-dúzia? Talvez os aconselhasse a parar um pouco, a respirar e a perguntarem-se, posto que estamos em 2021, como planeiam continuar com o resto das suas vidas? Pretendem viver a vida nas entrelinhas, ou em pleno?
Ah, ter de comer e pagar contas é, sem sombra de dúvida, a maior das inconveniências…